TEXTO I
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.
Poucos conceitos se prestam a tamanha confusão quanto o de “homem cordial”, central no livro Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Logo após a publicação da obra em 1936, o escritor Cassiano Ricardo implicou com a expressão. Para ele, a ideia de cordialidade, como característica marcante do brasileiro, estaria mal aplicada, pois o termo adquirira, pela dinâmica da linguagem, o sentido de polidez – justamente o contrário do que queria dizer o autor.
A polêmica sobre a semântica teria ficado perdida no passado não fosse o fato de que, até hoje, muitas pessoas, ao citar inadvertidamente a obra, emprestam à noção de Buarque de Holanda uma conotação positiva que, desde a origem, lhe é estranha. Em resposta a Cassiano, o autor explicou ter usado a palavra em seu verdadeiro sentido, inclusive etimológico, que remete a coração. Opunha, assim, emoção a razão.
Apesar do zelo do autor, no entanto, o equívoco persistiu. Afinal, o que haveria de errado na cordialidade brasileira, nesse sentido de afetuosidade típica de um povo? Não haveria nada condenável se a afabilidade se desse em ambiente privado, em relações entre familiares e amigos. A expressão “homem cordial”, a propósito, fora cunhada anos antes, por Rui Ribeiro Couto, que julgou ser esse tributo uma contribuição latina à humanidade.
O problema surge quando a cordialidade se manifesta na esfera pública. Isso porque o tipo cordial – uma herança portuguesa reforçada por traços das culturas negra e indígena – é individualista, avesso à hierarquia, arredio à disciplina, desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e ao compadrio, ou seja, não se trata de um perfil adequado para a vida civilizada numa sociedade democrática.
Um dos estereótipos mais arraigados em relação à cultura brasileira é a de que somos um povo alegre, hospitaleiro e festeiro. Ora, de cada 100 assassinatos ocorridos no mundo, 13 verificam-se no Brasil. O pensamento machista domina a sociedade de alto a baixo —uma em cada três pessoas (homens e mulheres) acredita que o estupro ocorre por causa do comportamento feminino. A violência no trânsito é responsável pela terceira maior causa de óbitos no Brasil, logo após as doenças cardíacas e o câncer.
Talvez tenhamos que repensar o caráter do brasileiro. Afirmar que os brasileiros somos naturalmente alegres é desconhecer a insatisfação latente que vigora nos trens, ônibus e vagões de metrô lotados. Falar que os brasileiros somos tolerantes é desconhecer nosso machismo, nossa homofobia, nosso racismo. Dizer que os brasileiros somos solidários é desconhecer nossa imensa covardia para assumir causas coletivas. A frustração, como já alertou uma canção do Racionais MC, é uma máquina de fazer vilão. No fundo, estamos empurrando a sociedade para o beco sem saída do autismo social.